sábado, 29 de maio de 2010

O Pagode de Amarante: um patrimônio cultural afro-descendente piauiense - Parte II

Conquistando Espaços. A Formação dos Estratos Étnicos

A imigração para o Piauí teve como principal região fornecedora, em um primeiro momento, a zona produtora de cana-de-açúcar do nordeste brasileiro. Esse movimento migratório foi causado, em parte, pela desvalorização do açúcar brasileiro como fonte exportadora no mercado internacional, ocasionada pelo crescimento e concorrência da produção antilhana. O desaquecimento da economia açucareira do litoral brasileiro, no século XVIII, recrudesceu o fluxo migratório para o interior em busca de novas alternativas de trabalho (MOTT,1985). Essas correntes migratórias foram atraídas para os "sertões de dentro" pelo crescente desenvolvimento da economia do gado, instalando-se na nova região e adequando-se ao novo modo de produção econômica.
Para a historiadora Tanya Brandão (1995), o “emprego do escravo no criatório piauiense ocorreu desde a implantação dos primeiros currais”, cuja função destinava-se à construção e manutenção da infra-estrutura das moradias, o lida no campo e o cultivo das roças.
Outro fator que iria favorecer a imigração para o Piauí seria a necessidade de mão-de-obra, dificultada pela resistência indígena à escravidão. É a partir daí que os novos fazendeiros piauienses iniciam, via Bahia, uma substancial introdução do negro africano nas fazendas estaduais (DIAS, 1996). Seriam, portanto, as últimas décadas do século XVII e as primeiras do século XVIII, que marcarão o início da imigração para o Piauí com pedidos de doação de terras, favorecendo, principalmente, as famílias baianas e maranhenses, oriundas de antigas zonas agrárias (MOTT,1985).
Estes primeiros colonizadores implantarão no solo piauiense o sistema de produção baseado na pecuária extensiva, ou seja, a criação de gado livre em extensos latifúndios que se tornaria a marca da economia regional. São esses núcleos produtivos que irão dar origem às primeiras povoações e atuais cidades, grande parte delas originadas de antigas fazendas, o que de certa forma demonstra, estruturalmente, a característica da formação social e econômica do Piauí: de um lado, os grandes proprietários de terra que constituem hoje as oligarquias estaduais; e do outro lado, a massa da população constituída de pequenos sitiantes, vaqueiros, escravos, índios, representando o grupo social dominado (DIAS, 1996).
Nestas fazendas de gado existiam dois tipos de mão-de-obra: o escravo, na grande maioria, africano, que a historiografia tradicional procura desvalorizar sua relação com a pecuária, preferindo associá-lo ao trabalho doméstico não produtivo; uma pequena parte índio; e o trabalhador livre - grupo formado por mulatos, caboclos, mestiços e índios (que, por sua vez, podiam ser escravos) (DIAS, 1996).
Alguns dados demográficos das fazendas piauienses demonstram que o trabalho escravo foi amplamente empregado nesta região. Um estudo realizado pela historiadora Claudete Miranda Dias (1996) afirma que, nos finais do século XVII, os escravos constituíam 70% da população total das fazendas. Também o historiador Luiz Mott (1985), referindo-se à população escrava do Piauí, afirma que: “Em 1762, constatamos que os escravos representavam 45,8% da população rural, estando presentes em 67,8% dos domicílios”. Numa comparação estatística com a população escrava do Brasil, nos finais do século XVIII eles “representavam aproximadamente 38,6% da população total do Império”, onde se conclui que a economia pecuarista do Piauí dependeu fundamentalmente do trabalho escravo, seja negro ou mestiço.
Os primeiros grupos de escravos chegados ao Piauí foram trazidos, no final do século XVII, pelos primeiros fazendeiros que vinham da região do rio São Francisco, com seus rebanhos. Mais tarde, foram introduzidos em maior número para o fornecimento de mão-de-obra às "Fazendas Nacionais", de propriedade de Domingos Afonso Sertão e também às fazendas dos Garcia D'Ávila, proprietários da "Casa da Torre", da Bahia (CHAVES, 1971).
Outros escravos foram introduzidos no Piauí pela estrada que ligava a capital da Província - Vila do Mocha, hoje Oeiras - ao principal núcleo mercantil consumidor da pecuária piauiense, a feira de Capoame, na Bahia.
Uma historiadora detalha a origem dos negros do Piauí Colonial:

“... entre os africanos, tantos bantos como sudaneses foram trazidos para o Piauí. Relativamente às nações de origem, predominavam os procedentes de Angola, 56,68%, seguidos pelos Minas, 13,17%, Benguelas, com 9,57%, Guiné, 9,36%, Congos, 9,36% e Gêge, 2,43%. Havia ainda entre os Moçambiques, Rebolos e Cassangues, com um percentual de 0,97% cada. Evidentemente, foram computados apenas os indivíduos para os quais constou explicitamente a nação de origem” (BRANDÃO, 1984).

Deve-se levar em consideração, também, a diversidade cultural e étnica das populações africanas que vieram para o Brasil, decorrente da divisão geopolítica da África realizada sob a lógica dos colonizadores, com reflexos ainda hoje no continente africano. É evidente que estes problemas refletiram substancialmente na escravidão no Brasil - Colônia.
A Abolição da Escravatura irá ocasionar uma mudança no quadro social e econômico brasileiro. Liberto o cativo, alguns deixaram o meio rural buscando um novo contato com a cidade, convertendo-se em mão-de-obra disponível; outros, permaneceram “flutuando entre o campo e a cidade” sem conseguir uma imediata adequação à nova situação. Outros mais, permaneceram no campo, caracterizando-se pela dificuldade de vida auto-suficiente no meio rural - dificuldades de condições materiais, a falta de títulos de propriedade e de incentivos agrícolas. Estes problemas impulsionaram o movimento em direção ao núcleo urbano, ainda em processo inicial de industrialização, que não conseguiu absorver esse excedente de mão-de-obra, excluindo os afro-descendentes das instituições urbanas e provocando uma segregação socioeconômica. Alijado do florescente mercado urbano, a alternativa foi sobreviver em atividades consideradas “inferiores” e até “marginais” neste novo quadro social. Segregação, também, cultural, na qual os costumes, as tradições, os padrões de comportamentos, bem como a religião dos afro-descendentes, foram considerados como manifestações da “cultura primitiva”, da barbárie, sendo, portanto, inferiores aos valores da sociedade branca.
Esta segregação social, econômica e cultural irá refletir na organização dos espaços sociais brasileiros. O negro, oriundo da escravidão, para o discurso dominante, o afro-descendente será um “empecilho ideológico à modernização” (SODRÉ,1988), ao controle higiênico e saneamento urbano, devendo ser afastado do “território civilizado”. A estratégia foi a criação de espaços fora do controle das classes dirigentes, onde práticas comunitárias e alternativas puderam ser desenvolvidas. Nas grandes cidades brasileiras irão surgir os “morros” e “favelas” e os bairros de periferia; nas pequenas cidades do interior, surgirão os povoados e comunidades rurais.

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