sábado, 29 de maio de 2010

O Pagode de Amarante: um patrimônio cultural afro-descendente piauiense - Parte III

O “Negro do Mulato” ou o “Negro do Mimbó”. A redefinição dos espaços sócio-culturais

A ocorrência de comunidades quilombolas marca significativamente a região que pesquisamos. Locais como o Mimbó, o Canto dos Pretos, o Côco - demonstram a existência ou vestígios de núcleos populacionais negros, com um modus vivendi conservado ao longo do tempo. O já bastante difundido Mimbó, uma comunidade afro-descendente nas margens do rio Canindé, junto à foz do riacho Mimbó, no município de Amarante, já existia como núcleo de povoação estruturalmente no último decênio do século XIX, organizado em um complexo sistema de relações de parentesco em torno de dois clãs familiares, desenvolvendo uma produção agrícola singular baseada no cultivo de "vazantes" ribeirinhas e na criação de animais de pequeno porte.
Um fato que também marca o Mimbó é o seu importante ciclo de festas, atraindo as populações vizinhas. A forma religiosa tradicional é o “terekô”, diretamente ligado à ancestralidade cultural das práticas religiosas dos escravos africanos. O Pagode também está presente no Mimbó, onde é amplamente praticado, atuando como promovedor dos contatos dos mimboenses com a sociedade urbana de Amarante e cidades vizinhas. Estas expressões culturais, tanto a de cunho religioso como o Pagode, acabaram por favorecer esta proximidade, rompendo certas barreiras erguidas historicamente e ampliando as formas de relacionamento entre as diferentes camadas do corpo social.
Segundo Roger Bastide (1974), o surgimento de comunidades afro-descendentes no meio rural pode ser analisado sob alguns aspectos: “o que o volta para o seu passado perdido para fazer reviver, e o de sua necessária adaptação a um novo meio”. Parece óbvio que a única saída para a sobrevivência do homem negro foi isolar-se, inicialmente nos quilombos, para depois iniciar o processo de constituição de comunidades rurais, onde, através de atividades econômicas e sociais fosse reativando suas práticas culturais dispersas. Esse ambiente favoreceu a retomada desse patrimônio cultural ancestral e a sobrevivência como indivíduo ou grupo social. Mesmo com a dispersão pós-abolicionista foram desenvolvidas maneiras ou estratégias de identificar uma origem comum centrada nos valores, normas, práticas culturais comuns, tais como, organização social, religiosa, econômica e artística, iniciando um processo de reconstrução de uma identidade “física”, ligada aos aspectos da terra - o rio, a serra, etc. - constituindo, assim, uma nova entidade cultural e espiritual.
O desenvolvimento dessas formas paralelas de organização, os espaços quilombolas, foi uma forma alternativa de sobrevivência para o afro-descendente. Para Alfredo Bosi,

“A alternativa para o escravo não era, em princípio, a passagem para um regime assalariado, mas a fuga para os quilombos. Lei, trabalho e opressão são correlatos sob o escravismo colonial. Nos casos de alforria, que se tornam menos raros a partir do apogeu das minas, a alternativa para o escravo passou a ser ou a mera vida de subsistência como posseiro em sítios marginais, ou a condição subalterna de agregado que subsistiu ainda depois da abolição do cativeiro. De qualquer modo, ser negro livre era sempre sinônimo de dependência” (BOSI, 1992).

Essas comunidades típicas da zona rural permaneciam “fechadas” apenas em um modelo e uma prática alternativa da sociedade dominante. Existiam as interações, os contatos, principalmente, na comercialização dos produtos nos dias de "feira" e nos momentos de festa, onde a praça principal da cidade era, sem dúvida, o campo intermediador dessas diferenças. Nela, ou próximo a ela, ocorreriam as produções tanto a nível simbólico, quanto a nível material; as negociações, os acertos e, também, os confrontos. Portanto, o conceito “fechado” não convém traduzir-se por algo isolado, impenetrável. Esses núcleos possuem essa característica mais como um meio de defesa de um território conquistado, como estratégia de resistência frente a uma postura segregacionista - que positivava a separação sociocultural - adquirida historicamente pela população urbana com relação à população negra.

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