segunda-feira, 21 de junho de 2010

Eu canto em qualquer lugar”. O Pagode de Amarante - Parte IV

O Pagode: a herança africana.

“Foi no começo do mundo.
Dança velha dos velhos antigos.
Não tinha esse negócio de agarrado não.
Tudo era Pagode”.

Tudo leva a crer que as danças e batuques tenham entrado no Piauí com os primeiros escravos trazidos pelos criadores para o trabalho em suas fazendas de gado. José Ramos Tinhorão, ao pesquisar o lundu - dança de origem negra - e sem citar especificamente o Piauí, faz uma referência à penetração desta dança pelo interior da Bahia, curiosamente, pela mesma rota utilizada pelos fazendeiros baianos quando da posse de terras e da implantação dos currais de gado no solo piauiense:

“... ao penetrar pelo interior da Bahia, (o lundu) seguindo o rio São Francisco na direção norte, lá chegou com o nome de baiano, transformado em baiana no Ceará, na segunda metade do século XIX” (TINHORÃO, 1988, p.62).

Câmara Cascudo também refere-se a esta dança como:

“Baiano ou baião. Dança sapateada, em que os personagens davam castanholas do começo ao fim... em vez da embigada atira-se com os dedos um estalo de castanholas na direção da pessoa escolhida” (CASCUDO, s.d., p.128).

É interessante observar que, semelhantemente ao baiano descrito por Câmara Cascudo, o Pagode em sua expressão coreográfica utiliza uma espécie de castanholas, denominada na região de gafanhoto, executada pelos dançarinos no momento da coreografia, que contribuem para pulsação rítmica e induzem a escolha ou recusa dos parceiros na dança.
Acreditamos que o Pagode (como diversas danças afro-brasileiras) teria se originado de velhas danças e batuques dos terreiros negro-brasileiros, que foram se modificando, incorporando novos elementos de acordo com as características regionais. Havia nomes genéricos capazes de caracterizar essas danças negras, como batuque, samba, lundu. A esse respeito, Muniz Sodré comenta:

“A rigor, todas essas danças faziam derivar a sua organização formal (incorporando, evidentemente, os elementos específicos de cada região) do samba ou batuque africano, trazido para o Brasil por escravos originários de Angola e Congo, principalmente” (SODRÉ, 1979, p.26).

Tinhorão, também, é da mesma opinião quando afirma que:

“...os batuques herdeiros das rodas de danças africanas originaram ainda uma série de danças que ficariam como expressões quase exclusivas de negros e mestiços do campo e das cidades do Brasil” (TINHORÃO, 1988, p.69).

Também, Édison Carneiro afirma que:

“... a presença das danças africanas no Brasil já supõe um demorado processo de aclimação, com a perda de alguns elementos e aquisição de outros, novos, sugeridos ou impostos pelo ambiente”. “Mudando de terra (da África para o Brasil) e de grupo social (dos escravos para a população em geral)...estas danças sofreram uma evolução desigual no país” (CARNEIRO, 1982, p.45).

Portanto, todo esse patrimônio cultural afro-descendente (festas, danças, e todo o complexo mítico-religioso) na tentativa de preservar uma memória cultural africana, iria manifestar-se em locais próprios, reconquistados, reterritorializados, os terreiros, em sua dupla dimensão: a dimensão religiosa, com as casas de candomblé, diretamente ligadas à cosmogonia africana; e a dimensão simbólica, o campo das dramatizações e festas nos espaços abertos ao lado das casas. Essa concepção de terreiro está voltada para o lugar de entrecruzamento de culturas distintas (negras, brancas, indígenas) e a incorporação de novos elementos que iriam favorecer as transformações culturais.
Como, então, conceituar o Pagode de Amarante? Primeiro, queremos fazer algumas considerações.
O Pagode de Amarante difere do pagode cantado e dançado na cidade do Rio de Janeiro, fenômeno cultural de massa explodiu, principalmente, no mercado do disco e da televisão na década de 80, estando atualmente em processo de revitalização pelo “mercado cultural”. Neste estudo não pretendemos traçar nenhum paralelo entre estas duas manifestações, apesar de reconhecermos nas formas e origem de ambas, a persistência de elementos característicos comuns: a utilização predominante de instrumentos de percussão; o recurso da improvisação, tanto do canto, como da coreografia na dança; a irreverência e a liberdade na construção temática das letras e, também, a prática no terreiro, o lugar aberto em frente às moradias. Também reconhecemos que ambas são sínteses culturais de origem processadas no seio de comunidades negras, com o “pagode carioca”, surgindo e se estruturando das rodas de samba e de partido-alto dos “redutos negros” do Rio de Janeiro. Comparativamente, os bairros da Saúde, Cidade Nova e Praça Onze estão para o samba e o pagode, assim como o vale dos rios Canindé e Mulato para o Pagode de Amarante: o lugar da aglutinação e da reordenação dos afro-descendentes oriundos do processo abolicionista.
Diversos pesquisadores da cultura popular brasileira fizeram referência ao termo pagode, alguns, como forma estruturalmente definida, outros, como significações genéricas de certas manifestações populares. Câmara Cascudo no seu Dicionário do Folclore Brasileiro refere-se a pagode como: “Festa, reunião festiva e ruidosa, festa com comidas e bebidas, havendo ou não danças, festa sempre de caráter íntimo, comparecendo amigos, pagodeiros” (CASCUDO, s.d., p.659).
Cascudo conceitua genericamente o termo pagode, significando festa, reunião festiva bastante comum na área nordestina. Para Oneyda Alvarenga, samba e batuque tornaram-se designações genéricas de danças de rodas “acompanhadas por forte instrumental de percussão”. O termo samba teve o seu sentido ainda mais abrangente, “representando qualquer baile popular, equivalente a "função", "pagode", "forró", e outros mais”.
A propósito, Alvarenga (1982, p.152) acata a concepção de Cascudo, alargando mais o sentido do termo pagode, relacionando-o com samba, forró, etc. Ressalte-se que na região que pesquisamos, os termos forró, pagode e função possuem sentidos diferentes, como por exemplo, o forró sendo festa de ambiente privado, mesmo que numa pequena cobertura de palha denominada "latada". Função está mais relacionada ao desafio de violeiros, à disputa em versos previamente combinada, promovida e organizada por algum morador do bairro ou povoado rural. Pagode está sempre relacionado a festa ao ar livre, no terreiro. A diferenciação também passa pelas características intrínsecas das festividades - tipo de música, instrumentos musicais utilizados, dança, etc.
Em Folguedos Tradicionais, Édison Carneiro (1982) aproxima pagode ao samba, ao coco e ao partido-alto, demonstrando preferência pelo termo samba ou batuque (queremos crer, como samba herdeiro do batuque) para a designação mais genérica.
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“Em toda esta vasta área (zona de plantio e mineração), angolenses e congueses legaram aos seus descendentes, formas de batuque ainda reconhecíveis, apesar de já misturadas com outras danças, populares ou não - formas que, primitivamente rurais, de execução nos terreiros das fazendas, estão atualmente em diferentes estágios de urbanização”.

É esse autor que vai propor três áreas distintas de classificação do samba, divididas de acordo com as denominações regionais, estando o Piauí incluído na zona do samba por influência do vizinho Maranhão.
Essa classificação de Carneiro reforça a hipótese do Pagode de Amarante ter vindo do Maranhão através do rio Parnaíba, penetrando na região piauiense e a partir daí, se alastrando pelo vale dos rios Canindé e Mulato, iniciando o processo de síntese e expansão cultural.
Alceu Maynard (1964, p.389-390) já falava de uma Roda-de-Pagode na região do Baixo-São Francisco:

“Atividade lúdica de adultos do Baixo-São Francisco por ocasião das festas de plenitude ou principalmente na pequena vacância agrícola de inverno [...] Ali todos cantam e a roda-de-pagode alagoana põe no corpo da gente uma vontade insopitável de dançar, bailar. Ela congraça os membros adultos da comunidade, caem as barreiras sociais, pobres e ricos, moradores das casas de tijolos e das choupanas de palha, de mãos dadas, alguns cantam ...”

Portanto, seguindo os estudos dos etnógrafos citados, chegamos à conclusão de que o termo pagode é bem genérico, sendo aplicado a diversas manifestações e cultuado em grande área brasileira, representando sempre uma festa popular com suas diferenças marcadas pela própria heterogeneidade regional, bem como pelos contatos com diferentes formas da cultura popular.

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